quinta-feira, 13 de março de 2008

Para onde estão a ir as pessoas com narrativa?

Não seria seguramente o mesmo fotógrafo porque também não teria evoluído para ser a mesma pessoa que foi, seguramente que não.

Por diversas razões, porque tudo está diferente... Podíamos começar aqui a discutir sobre diversos factores desde a fotografia digital, à descaracterização da fotografia nesta era altamente tecnológica e com software que "permite" fazer "tudo" (estou a ser irónico sim) após a captura, no culto pelos gadgets que acaba um pouco por se espalhar para a fotografia, etc, etc. Um sem fim de factores que poderiam influenciar negativamente qualquer 'génio' que já faz parte da história da fotografia.

Mas não, não são destes factores sobre os quais quero escrever, para mim há um muito importante e que preocupa bastante mais que qualquer um dos outros, porque desses qualquer fotógrafo (no verdadeiro sentido da palavra) se consegue abstrair e preocupar-se com a essência daquilo que é a fotografia, aquilo que importa, fazer fotografias, colocar em pequenos (ou grandes) rectângulos (ou de outro formato) de imagem aquilo que se coloca à frente dos nossos olhos interpretado de acordo com o nosso estilo pessoal, com o nosso toque.

A minha preocupação está num dos motivos fotográficos de maior riqueza (senão O de maior riqueza): as pessoas. E o problema é simples, é sobre a descaracterização das mesmas no seu dia a dia, nas suas vivências e no contacto que têm com o ambiente em seu redor. Se olharmos para as fotografias de Doisneau ou de Cartier-Bresson as pessoas fazem parte da fotografia, da cena, interagem com o que está em seu redor, existe ali cumplicidade não só entre a pessoa e a cena mas também uma consciência positiva da presença do fotógrafo, uma interacção que enriquece a fotografia, uma narrativa genuína. Por essa altura as pessoas e o que as rodeava estavam verdadeiramente relacionadas.

Agora muitas pessoas estão apenas de passagem, não deixam a sua identidade transparecer em conjunto com o que as rodeia, o local onde se encontram não é nada mais que um ponto de passagem sem importância, um transporte público, o mesmo local por onde passam todos os dias, de casa para o emprego e do emprego para casa, sempre o mesmo sítio cansativo, com conotações negativas, "mais um dia de trabalho". Isto não é uma regra geral, longe disso, mas é sem dúvida uma descaracterização das pessoas e dos locais que está a acontecer especialmente em grandes cidades cosmopolitas que estão a perder toda a sua identidade e vivência próprias, estão a ficar desprovidas daquilo que as tornava únicas e estão todas a seguir o mesmo padrão "industrial"...

Alguns locais são assim, mas é claro que continuam a existir muitos locais e cidades que embora tenham evoluído com os tempos souberam conservar a sua identidade e adaptá-la, locais onde as pessoas continuam a fazer parte do seu redor e não são apenas espectros transparentes e desprovidos de qualquer riqueza.

A própria interacção entre fotógrafo-pessoas é diferente, a massificação dos dispositivos que permitem a captura de imagens tornou estas interacções um pouco banais, deixou de existir aquela curiosidade para com uma pessoa que tem uma camara na mão, já não é o mesmo diálogo. Mais uma vez, isto não é uma regra geral, é uma tendência crescente que eu não quero acreditar que se torne geral, o que não falta são locais por este mundo fora que têm identidade própria e cujas pessoas interagem com o que as rodeia de formas únicas, a cultura e a tradição não são coisas que desaparecem, mas é preciso admitir que preocupa e que uma pessoa fica bastante triste quando por exemplo olha para Lisboa de à uns anos atrás e agora vê a cidade a perder os últimos bocadinhos de identidade e tradição que ainda tem. Onde foram parar os "Lisboetas"? Estarão todos fechados nos bairros tradicionais quase como irredutíveis Gauleses? Seguramente que não se tornaram todos empresários, consultores, engenheiros, contabilistas, juristas e outros tantos géneros que passam pelos mesmos sítios todos os dias sem deixar marcas, sem pararem para olhar, para interagir, para serem imortalizados em pequenos rectângulos de imagem com um mínimo de essência...

Para onde estão a ir as pessoas com narrativa?

Um comentário:

Ana Marques disse...

deixa-me só deliciar mais um bocadinho...

bebi as palavras desde o início da inquietação que te provocou esta ideia.

O mundo está a mudar sim. As pessoas são voláteis, apressadas e muitas vezes têm medo do registo fotográfico. Têm que ser conquistadas mas depois torna-se difícil fazê-lo nesta sociedade non stop de passageiros em constantes migrações pendulares.

Onde está o sentido psicológico de comunidade em lugares tão-supostamente-típicos como Lisboa? Talvez no 12 de Junho por alturas dos Santos. Aí sim, os alfacinhas saem à rua para se misturar com os engenheiros, consultores, juristas... E pelo menos nessa noite todos são iguais e todos se dão. Mas é um facto que no tempo do Bresson as coisas eram diferentes e daí as suas fotografias serem tão queridas na actualidade. Acho que os fotógrafos têm inveja da disponibilidade dele para se entranhar, para comtemplar, para viver com as pessoas, conhecê-las, dar-se a conhecer e, por fim, conseguir passar desprecebido e conquistar a cumplicidade das interacções, sem constituir um elemento estranho ao sistema.

Á parte disso, a minha surpresa/orgulho-babado ao ouvir esta tua constação pode ser explicada se vista no contexto do teu desenvolvimento pessoal/fotográfico/profissional dos últimos meses. Quem é que não tinha jeito para pessoas e preferia macros e paisagens (muito bonitas e bem captadas, como só tu o poderias fazer, claro!)? Convertido às pessoas e às histórias que têm para contar... Não era também assim o Bresson?!